Tudo estava fluindo muito bem. Um dia lindo, o amanhecer perfeito.

Eu estava segura de ter feito tudo para estar pronta, chegando a ficar orgulhosa destes feitos.
Caí na água, o sol nasceu, fui de leve encaixando o nado, com braçadas alongadas e respiração bilateral. A cada 500m nadados eu sabia que estava bem, meu tempo me mostrava e eu falava para os que estavam no barco. Até desafiei uma aposta, que felizmente ninguém respondeu.
Estava ansiosa para entrar no leito do rio e aproveitar a correnteza a favor.

Somente senti meus dentes ficando porosos e a água ácida entrando e amarelando.
Perto dos 5km senti minha perna esquerda começando a contrair, recentemente durante um treino, tinha tido câimbras terríveis no músculo tibial, fui reduzindo as pernadas para tentar evitar uma crise.
Entrei no leito, as folhas e galhos vinham como surpresas boas.

A correnteza começou a ajudar, porém o vento contra entrou mais cedo, estava perto dos 14km (quase na metade do desafio) até que de uma hora para outra, antes mesmo de avistar a primeira vila, rajadas fortes entraram em cena assustando a todos.Passamos por Paricatuba, e no barco conseguiram os primeiros sinais de internet, agora o desafio passou a ser de todos que estavam me acompanhando on line, eu lembrei de tanta gente naquele momento!
Infelizmente o vento continuou com força, me afastava do barco para ficar mais segura. Fiquei sem estilo definido, sem conseguir me orientar com a respiração frontal, senti e vi o medo nas faces de quem estava no barco, as condições em que eu estava nadando não eram das mais normais, minha staff teve uma crise de desespero, por mim e por ela mesma, porque iria encarar o rio e seus 30k alguns dias depois.

Eu tinha certeza e fé que o vento iria em breve passar e acalmar, continuei nadando. Perguntei para o organizador se ele tinha alguma previsão, e a resposta foi um silencio profundo.
Meu tempo dos 500m se manteve entre 9 / 10 minutos, o que não era péssimo, mas muito longe dos 6 / 7 minutos que eu tinha previsto para este trecho.

A hidratação era muito difícil, sem vara do apoio, não conseguia pegar facilmente a garrafa, a péssima flutuação e o medo de dar uma pernada meio errada que viesse a desencadear uma câimbra, me deixaram cansada e sem vontade de suplementar.
Comecei a tentar engolir o suplemento debaixo da água, fechava bem a boca da garrafa com os lábios e ia para o fundo onde não ouvia ninguém falando comigo, não sentia as ondas baterem e nem me engasgava com os solavancos. Só eu e minha míseras condições, de ter que me contentar com as migalhas de pão amassado e um líquido de qualquer cor ou de qualquer sabor, mas era minha segurança de ficar com energia suficiente e hidratada.

Parar de nadar não era uma boa opção, o barco me puxava para baixo, tive que tomar muito cuidado pois o motor desorientado com as ondas e ventos fazia o barco ficar sem direção. O capitão teve de passar o tempo todo lutando para manter a direção e prumo. O que foi impossível no KM 20, quando fizemos uma “barriga” na rota, aumentando em quase 2km o desafio. O que foi comprovado no mapa.

Eu sabia que tinha muita gente torcendo por mim, não conseguia lembrar de ninguém naquela hora, só estava concentrada nas braçadas tortas e pernadas submersas, esse era meu “presente”.
Entrei em modo “exploda-se” fiquei muito braba com a situação, a cada hora que passava, quando passava o tempo registrado dos outros nadadores que fizeram os 30k, ficava mais frustrada.
A vontade de desistir era uma possibilidade para não passar vergonha, seria fácil dizer que não tinha tido condições de nado, mas estava tão tonta e tão focada no meu objetivo, que nem conseguia pensar em outra possibilidade.
Como estava nadando, continuei nadando.

Só suportando a situação de estar sendo “morta” a cada onda e solavanco, me sentia exposta e sem máscaras, sem enxergar o quanto era profunda e linda essa experiência.
O banzeiro (como os manauras chamam estas condições do rio) me deixou assim: sem domínio de mim mesma.
A única coisa que sentia é que estava tentando acalmar o rio com braçadas leves e suaves.
Com dor nos dois ombros, pensei que a qualquer momento poderia romper um tendão, mas eu estava decidida a suportar e não desistir de tentar chegar no fim.
Quando avistei os primeiros 3 prédios na praia da Ponta Negra, me falaram: faltam 3 km. Na hora eu sabia que estavam errados, respondi na lata: faltam 5 Km!!! Eu sabia que iria nadar mais do que 30km. A estratégia deles para me motivar não de muito certo, fiquei mais isolada nas minhas lutas interiores, pois não conseguia confiar nas exteriores. Lembrei de uma conversa 4 dias antes, quando vi as previsões climáticas… “E esse ventinho forte Bem Contra?” Recebi a resposta: “Manaus não funciona assim, vento não atrapalha.”

Entrei nos últimos 5km com vento mais fraco, ondulações médias. Somente nos últimos 2km que realmente acalmou, nesse momento eu já estava muito cansada, meu nado estava fraco. Restou pouco de mim fisicamente e emocionalmente.
Só lembrava que estava concluindo o desafio com o pior tempo da história.
Não fazia ideia de como sair da água e comemorar. Comemorar o que?
Meu orgulho de ter feito TODOS os treinos de piscina, treinos no mar, na represa, treinos de musculação, de ter me alimentado na dieta sem escapadas, ter investido tempo no projeto e ter feito toda a execução (pesquisas, compra de passagens, estadia, roteiros, fotógrafos, layouts, camisetas, busca de apoiadores, divulgação, postagens…)
Tudo
Tudo que fiz não me deu o resultado que esperava que era um número.
Mal sabia eu que números, são só números.

Mas aí vieram as lágrimas, enchi meus óculos, o arrepio nos braços e o nó na garganta, estava debaixo das águas Negras do rio sendo liberta de preconceitos, liberta de resultados de números, liberta de poderes que não são meus e sim da natureza.
Eu estava chegando no “cume” de uma montanha plana, me arrastando, pronta para ver uma paisagem linda… Consegui lembrar do que tinha falado para minha amiga, que achava que iria morrer nessa prova porque estava elogiando, agradecendo e com a sensação de estar me “despedindo” de todos meus amigos e parentes.
• Meu orgulho Morreu
• Minha técnica de nado Morreu
• A força da minha braçada Morreu
• Minha mente não comandava mais e Morreu também.
Cheguei em cacos, não tinha como erguer um troféu de míseras 500gr, ficar de pé e abraçar a todos.
Naquele momento eu tive a certeza que não fui eu, mas meu Paizinho em sua absurda misericórdia que me encheu de ânimo e força para ser uma nova Sandra.

“Os corpos ressuscitados são guerreiros mais belos porque trazem nas suas mãos as cores do arco-íris. E os corpos se transformam então em semente que engravida a terra para que nasça o futuro…”
Rubem Alves.
Este texto é uma republicação autorizada pela autora SANDRA KOCH – @sandrareginakoch