Avon, CT (EUA) – Em 1960, Nélson Rodrigues escreveu uma peça que causou grande escândalo no Brasil daquela época.
Chamava-se O Beijo no Asfalto e seu enredo era muito simples: um homem é atropelado e, em seus últimos momentos de vida, faz a um outro homem, um transeunte desconhecido que o socorrera, um último pedido: um beijo no boca.
Impelido pela misericórdia, o transeunte atende ao pedido. O atropelado morre. O transeunte tem sua vida mudada para sempre.
Por que? Porque um repórter que passava vê a cena e a descreve em seu jornal.
O transeunte piedoso é um homem comum, casado.
Sua vida muda totalmente. No emprego, é vítima de piadas. Sua mulher passa a olhá-lo com desconfiança. Nas ruas, é reconhecido e ridicularizado. Seu sogro, com quem não se dava, move-lhe uma campanha de difamação.
No Brasil daquela época, o homossexualismo já não era mais crime, mas vergava ainda sob o peso da condenação pública. Armando Marques, um juiz de futebol famoso por seus trejeitos afeminados, era invariavelmente saudado aos gritos de “bicha” e “viado” em todos os estádios em que trabalhava.
Sinal dos tempos: o que está causando escândalo nos dias de hoje é um beijo na boca não de um homem em outro homem ou de uma mulher em outra mulher.
Tais cenas hoje em dia sequer causam um alçar de sobrancelhas.
Foi o beijo de um homem, o Presidente da Federação Espanhola de Futebol, Luis Rubiales, na boca de uma mulher, Jennifer Hermoso, jogadora de sua seleção, que acabara de se sagrar campeã de mundo.
Mais tarde, no vestiário, Hermoso disse que o beijo ocorrera contra sua vontade.
Assisti ao vídeo do episódio e devo confessar que não estou convencido de que Jennifer Hermoso procurou repelir o assédio. Vejo suas mãos em torno do corpo de Rubiales, no momento do beijo, não em um gesto de quem o repele, mas de quem o abraça. Ao fim do beijo, Hermoso dá dois tapinhas amistosos nas costas de seu suposto agressor.
Muito mais grave para mim é outro gesto de Rubiales, este sim gritante indício de que o Presidente da Federação Espanhola não tem um mínimo da dignidade que se espera de uma pessoa em seu cargo.
Ocorre no momento em que a partida é encerrada, com a vitória da Espanha sobre a Inglaterra. Numa Tribuna de Honra repleta de presenças ilustres – inclusive a Rainha da Espanha – Rubiales leva as duas mãos à sua…. ao seu… como dizer?… ao que, para lembrarmos o ofício de Armando Marques, um bandeirinha de futebol chamaria de seu “instrumento de trabalho” e o sacode, de modo triunfal, como quem diz “aqui, ó, pra vocês perdedoras…”, referindo-se às jogadoras inglesas.
Agora o mundo inteiro grita “aqui, ó”, pro Rubiales, o Beijoqueiro.
José Inácio Werneck é a autor do texto e está no CLUBE DO MOVIMENTO como JOSÉ INÁCIO WERNECK