Henry Kissinger, antigo Secretário de Estado (cargo que corresponde ao de Ministro das Relações Exteriores) e Conselheiro para Assuntos Externos dos Estados Unidos, morreu nesta semana aos cem anos.
Foi famoso por muitas negociações internacionais, entre elas a do fim da Guerra do Vietnam e, mais do qualquer outra, o reatamento de relações entre a China de Mao Tse Tung e os Estados Unidos, presidido na ocasião por Richard Nixon.
Mas eu guardo dele recordações diferentes. Como a do dia em que o Brasil foi eliminado na Copa do Mundo de 1974 no Westfalenstadion, em Dortmund, na então Alemanha Ocidental, pela Seleção da Holanda. Eu me encontrava na Tribuna da Imprensa e, a uma determinada altura, dei de cara com Henry Kissinger, ao lado de João Havelange, recentemente eleito presidente da FIFA, na Tribuna de Honra, poucos metros atrás de mim. Dizem que Kissinger tinha sido cabo eleitoral de Havelange em sua luta contra o inglês Stanley Rous, provavelmente para arranjar subornos de delegados de países africanos.
Sim, Henry Kissinger era um torcedor de futebol. Mais do que isto, um ardente torcedor de futebol. Há uma história do dia em que ele teve uma reunião com Leonid Brezhnev, o todo poderoso Secretário-Geral da antiga União Soviética, para discutirem desarmamento atômico – e acabaram conversando sobre Garrincha.
Outro episódio famoso ocorreu no dia em que, dizem, ele identificou que havia tropas soviéticas em Cuba, durante a crise ocorrida entre os Estados Unidos presidido por John Kennedy, e a União Soviética de Nikita Krushchev. Kissinger na ocasião estava na Universidade de Harvard e foi chamado para uma reunião na Casa Branca.
Lá, mostraram-lhe uma foto tirada por um “avião espião”, que mostrava soldados em uma atividade esportiva em Cuba.
– Eles são russos – afirmou Kissinger.
– Como você sabe? – perguntaram-lhe.
– Porque estão jogando futebol. Os russos gostam de futebol. Se fossem cubanos, estariam jogando beisebol.
Kissinger tinha jogado futebol em sua infância na Alemanha e, ao longo de toda sua vida, manteve seu interesse pelo esporte.
Um ano depois da Copa do Mundo de 1974, Kissinger disse ao New York Cosmos, time de futebol, que seria uma boa ideia contratar Pelé, que não jogava mais pela Seleção Brasileira e tinha anunciado sua aposentadoria no Santos.
O resto é história. De lá para cá o futebol cresceu enormemente nos Estados Unidos, o país sediou a Copa de 1994 e vai sediar outra, a de 2024.
Ao longo de sua carreira, Kissinger meteu-se em muitas controvérsias, como a de planejar o golpe do general Augusto Pinochet, no Chile, e a de “costurar” a Operação Condor, um pacto entre o governo americano e as ditaduras militares na América do Sul.
Quando a Copa de 1978 chegou, Kissinger já não estava mais no governo americano, presidido por Jimmy Carter. Tinha deixado seu cargo cinco meses antes, mas sua influência continuava. Foi assim que compareceu ao Mundial disputado naquele ano na Argentina, como convidado do governo do general Jorge “El Hueso” Videla.
Aquela foi a Copa do famoso “Campeonato Moral”, expressão criada pelo técnico brasileiro Cláudio Coutinho depois que a Argentina derrotou o Peru por 6 a 0 em um jogo estranhíssimo. O Brasil só deixaria de ir à final contra a Holanda se a Argentina derrotasse o Peru, na cidade de Rosario, por quatro gols de diferença. Algo que todos achavam impossível, dada a boa campanha que o Peru tivera naquele Mundial, inclusive empatando com a poderosa Seleção da Holanda.
Tal episódio é retratado em meu livro “Caminho do Mar” ( https://shre.ink/TZgI).
Acontece que, antes da partida, os jogadores peruanos receberam uma inesperada visita em seu vestiário. Era simplesmente o ditador argentino, Jorge Videla, acompanhado por ninguém mais, ninguém menos, do que Henry Kissinger. Videla então dirigiu-se aos jogadores peruanos, na presença de Kissinger, e disse-lhes que estava ali para lhes desejar boa sorte e que a torcida argentina, que lotava o estádio, aguardava o jogo “com ansiedade”.
“Sentimo-nos pressionados’, disse mais tarde José Velazquez Castillo, meio-campista da Seleção Peruana.
O resto é história. 6 a 0 para a Argentina. O Brasil ficou com o terceiro lugar (e o “campeonato moral”) depois de derrotar a Itália por 2 a 1, na véspera da grande final entre Argentina e Holanda.
Os jogadores peruanos foram recebidos em Lima, capital do país, debaixo de uma chuva de moedas, como se tivessem sido subornados.
Mas talvez tenham sido apenas intimidados. Henry Kissinger, ex-jogador de futebol, ardoroso torcedor, deixa em seu legado mais uma controvertida negociação internacional, se bem que esta em torno de uma bola.
José Inácio Werneck é a autor do texto e está no CLUBE DO MOVIMENTO como JOSÉ INÁCIO WERNECK